Evolução : Organismo unicelular pode explicar origem
do reino animal
Espécie descoberta em 2002 pode esclarecer o que tornou
possível o aparecimento dos animais, algo que até hoje não foi plenamente
entendido ( The New York Times)
A origem dos animais é um dos episódios mais misteriosos na
história da vida. A transformação de um organismo unicelular em um coletivo de
um trilhão de células exige uma enorme reestruturação genética.Espreitando no
sangue de caracóis tropicais há uma criatura unicelular chamada Capsaspora
owczarzaki. Esta espécie ameboide com tentáculos é tão obscura que ninguém a havia notado até 2002. Mesmo assim, em
poucos anos ela passou do anonimato a foco do mundo científico. Acontece que
ela é um dos parentes mais próximos dos animais. Por incrível que pareça,
nossos ancestrais há um bilhão de anos eram bem semelhantes à Capsaspora.
A origem dos animais foi uma das transformações mais
extraordinárias e importantes na história da vida. Eles evoluíram de ancestrais
unicelulares até uma profusão de complexidade e diversidade. Hoje estima-se que
sete milhões de espécies de animais vivem na Terra, desde vermes tubícolas no
fundo do oceano a elefantes se arrastando pesadamente pela savana africana.
Seus corpos podem conter trilhões de células capazes de se transformar em
músculos, ossos e centenas de outros tipos de tecidos e de células.
O amanhecer do reino animal, cerca de 800 milhões de anos
atrás, também foi uma revolução ecológica. Os animais devoraram os tapetes
microbianos que haviam dominado os oceanos por mais de 2 bilhões de anos e
criaram seus próprios habitats, como os arrecifes de corais. A origem dos
animais é um dos episódios mais misteriosos na história da vida. A
transformação de um organismo unicelular em um coletivo de um trilhão de
células exige uma enorme reestruturação genética. A espécie intermediária que
poderia mostrar como a transição aconteceu está extinta.
“Estão faltando apenas os passos intermediários”, afirmou
Nicole King, bióloga evolutiva da Universidade da California em Berkeley.
Pistas evolutivas — Para entender como os
animais assumiram esta forma de vida peculiar, os cientistas estão reunindo
diversas linhas de indícios. Alguns usam martelos de pedra para retroceder ao
registro fóssil de animais dezenas de milhões de anos atrás. Outros estão
encontrando assinaturas químicas de animais em pedras antigas. Ainda há um
terceiro grupo examinando os genomas de animais e de seus parentes como a “Capsaspora”
para reconstruir a árvore evolutiva dos animais e de seus parentes mais
próximos. Surpreendentemente, eles descobriram que muito do equipamento
genético para a formação de um animal já existia bem antes do próprio reino
animal.
Foi apenas nos últimos anos que os cientistas chegaram a uma
noção consistente do que são os parentes mais próximos dos animais. Em 2007 o
National Human Genome Research Institute iniciou um projeto internacional para
comparar o DNA de diferentes espécies e traçar uma árvore genealógica.
Os primos dos animais são um grupo diversificado. Ao lado da
habitante de caracóis, aCapsaspora, nossos parentes mais próximos
incluem coanoflagelados, criaturas semelhantes a ameboides que vivem em água
limpa, na qual elas caçam bactérias.
Agora os cientistas estão tentando entender como um
organismo unicelular como a Capsasporaou um coanoflagelado se
tornou um animal pluricelular.
Por sorte eles podem obter algumas pistas a partir de outros
casos nos quais micróbios fizeram a mesma transição. Plantas e fungos evoluíram
de ancestrais unicelulares, bem como dúzias de outras linhagens menos
familiares, de algas pardas a fungos mixomicetos.
A pluricelularidade primitiva pode ter evoluído com certa
facilidade. “Tudo que precisa acontecer é que os produtos da divisão celular se
mantenham unidos”, disse Richard E. Michod, da Universidade do Arizona. Uma vez
que organismos unicelulares passaram permanentemente para colônias, começaram a
se especializar em funções diferentes. Esta divisão de trabalho tornou as
colônias mais eficientes. Elas conseguiam crescer mais rápido do que colônias
menos especializadas.
Em determinado ponto a divisão de trabalho pode ter levado
muitas células dos protoanimais a perder sua habilidade de reprodução. Apenas
um pequeno número de células ainda fabricava as proteínas necessárias para
produzir descendentes. Assim, as células no resto do corpo poderiam se
concentrar em funções como juntar alimento e lutar contra doenças.
“Não é um obstáculo”, afirmou Bernd Schierwater, da
Universidade de Medicina Veterinária em Hannover, Alemanha. “É uma ótima
maneira de ser muito eficiente”.
Reciclagem de células — Mas a multicelularidade
também lançou novos desafios aos ancestrais dos animais. “Quando há morte de
células num grupo, elas podem intoxicar umas às outras”, afirmou Michod. Nos
animais as células morrem de forma ordenada, assim elas liberam relativamente
poucas toxinas. E ocorre o contrário: as células que estão morrendo podem ser
recicladas por suas companheiras vivas.
Outro perigo apresentado pela pluricelularidade é a
capacidade de uma única célula de crescer às custas de outras. Hoje esse perigo
ainda assombra: o câncer é o resultado de algumas células se recusando a jogar
pelas mesmas regras que as demais no nosso corpo.
Mesmo simples organismos multicelulares têm defesas
evoluídas contra esses trapaceiros. Um grupo de algas verdes conhecido como
“volvox” desenvolveu um limite para o número de vezes que qualquer célula pode
se dividir. “Isso ajuda a reduzir o potencial de células serem renegadas”,
disse Michod.
Para descobrir as soluções que os animais desenvolveram os
pesquisadores agora estão sequenciando os genomas dos seus parentes
unicelulares. Eles têm descoberto uma profusão de genes que se acreditava
existir apenas em animais.
Genes em comum — Para decifrar as soluções que
os animais desenvolveram, os pesquisadores agora estão sequenciando os genomas
de seus parentes unicelulares. Inaki Ruiz-Trillo, da Universidade de Barcelona,
na Espanha, e seus colegas, estudaram o genoma “Capsaspora” procurando por um
grupo importante de genes que codifica proteínas chamadas fatores de
transcrição. Fatores de transcrição ativam e desativam outros genes e alguns
deles são vitais para a transformação de um óvulo fertilizado no corpo de um
animal complexo.
Na última edição de Molecular Biology and Evolution,
Ruiz-Trillo e seus colegas relatam que aCapsaspora possui vários
fatores de transcrição que se acreditava serem exclusivos dos animais. Por
exemplo: eles encontraram um gene na Capsaspora que é quase
idêntico ao gene animal Brachyury. Nos humanos e em muitas outras espécies
animais o Brachyury é essencial para o desenvolvimento dos embriões, designando
uma camada de células que se tornarão o esqueleto e os músculos.
Ruiz-Trillo e seus colegas não têm ideia do que a
“Capsaspora” faz com um gene Brachyury. Neste momento eles estão fazendo
experimentos para descobrir. Enquanto isso, Ruiz-Trillo especula que parentes
unicelulares dos animais usam o gene Brachyury, junto com outros fatores de
transcrição, para ativar genes para outras funções. “Eles têm de conhecer seu
ambiente”, disse Ruiz-Trillo. “Eles têm de se unir a outros organismos. Eles
têm de comer presas”.
Estudos de outros cientistas apontam para a mesma conclusão:
muitos dos genes que se pensava serem exclusivos do reino animal estavam
presentes nos ancestrais unicelulares dos animais. “A origem dos animais
dependeu de genes que já estavam em seus lugares”, disse King. King defende que
na transição para animais plenos esses genes foram cooptados para controlar um
corpo multicelular. Genes antigos começaram a exercer novas funções, como
produzir a cola para manter as células unidas e que poderiam se transformar em
tumores.
Esponjas — Por décadas paleontólogos procuraram
pelos fósseis que registrassem esta transição até os primeiros
animais. Ano passado, Adam Maloof, de Princeton, e seus colegas publicaram
com detalhes o que eles sugerem que sejam os fósseis animais mais antigos já
encontrados. Os despojos, descobertos na Austrália, datam de 650 milhões
de anos atrás. Eles contêm internamente redes de poros, similares aos
canais existentes em esponjas vivas.
As esponjas também podem ter abandonado traços antigos.
Gordon Love, da Universidade da Califórnia em Riverside, e seus colegas
perfuraram depósitos de petróleo na Austrália datando de pelo menos 635 milhões
de anos atrás. Na mistura de hidrocarbonos retirados, eles encontraram
moléculas do tipo do colesterol que hoje são produzidas apenas por um grupo de
esponjas.
O fato de as esponjas aparecerem tão cedo nos registros
fósseis provavelmente não é coincidência. Estudos recentes sobre genomas de
animais indicam que elas estão entre as linhagens mais antigas de animais
viventes – se não são a mais antiga. As esponjas também são relativamente
simples se comparadas à maioria dos outros animais. Elas não têm cérebro,
estômagos ou vasos sanguíneos.
Apesar de sua aparente simplicidade, elas possuem
carteirinhas de membros do reino animal. Assim como outros animais, esponjas
produzem óvulos e esperma, que geram embriões. Larvas de esponja nadam pelas
águas para encontrar um bom lugar onde possam se estabelecer para a vida
sedentária e crescer, tornando-se adultas. Seu desenvolvimento é um processo
peculiarmente sofisticado, com células-tronco dando origem a diversos tipos de
células.
O primeiro genoma de esponja foi publicado só em agosto. Ele
ofereceu aos cientistas a oportunidade de comparar o DNA das esponjas com o de
outros animais, bem como com o da “Capsaspora” e outros de seus parentes
unicelulares. Os pesquisadores observaram cada gene no genoma da esponja e
tentaram compará-lo a grupos de genes de outras espécies relacionados,
conhecidos como famílias de genes.
No total eles encontraram 1.268 famílias de genes
compartilhados por todos os animais – incluindo esponjas – mas não por outras
espécies. Esses genes foram presumidamente transmitidos para os animais
viventes de um ancestral comum que viveu há 800 milhões de anos. Via pesquisa
deste catálogo, os cientistas podem inferir algumas coisas sobre como era esse
ancestral. “Não eram apenas bolota de células amorfas”, afirmou Bernard M.
Degnan da Universidade de Queensland. Na verdade eles já expeliam óvulos e
esperma. Ele podia produzir embriões e apresentar padrões complicados no
seu corpo.
Versatilidade e oxigênio — Entretanto, os
animais não apenas desenvolveram corpos pluricelulares. Eles também parecem ter
desenvolvido novas formas de gerar diferentes tipos de corpos. Os animais estão
mais propensos a mutações que recombinam partes de suas proteínas em novos
arranjos, processo conhecido como “domain shuffling”, que consiste numa
recombinação de domínios proteicos. “O 'domain shuffling’ parece ser crítico”,
afirmou Degnan.
Degnan e seus colegas encontraram outra fonte de inovação em
animais em uma molécula chamada microRNA. Quando as células produzem as
proteínas dos genes, elas fazem uma cópia do gene numa molécula chamada RNA.
Mas as células de animais também fazem microRNAs que podem atacar moléculas de
RNA e destruí-las antes que elas tenham chance de fazer proteínas. Dessa forma
elas podem agir como outro tipo de chave para controlar a atividade dos genes.
Os microRNAs parecem não existir em parentes unicelulares de
animais. Esponjas têm oito microRNAs. Os animais com mais tipos de células
que evoluíram mais tarde também desenvolveram mais microRNAs. Os humanos têm
677, por exemplo. Os microRNAs e o “domain shuffling” deram aos animais uma
nova fonte poderosa de versatilidade. Eles ganharam os meios para desenvolver
novas maneiras de produzir uma ampla variedade de formas – de grandes
predadores a comedores de lodo.
Essa versatilidade pode ter permitido a animais primitivos
se aproveitarem das mudanças que estavam ocorrendo ao seu redor. Cerca de 700
milhões de anos atrás a Terra saiu das garras de uma era do gelo mundial. Noah
Planavsky, também da Universidade da California em Riverside, e seus colegas
descobriram em pedras dessa idade indícios de um afluxo repentino de fósforo
para os oceanos no mesmo período. Eles especulam que conforme as geleiras
derreteram, o fósforo foi lavado da terra exposta para o mar e agido como uma
dose concentrada de fertilizante, estimulando o crescimento de algas.
Isso pode ter levado à elevação rápida do oxigênio no oceano
ao mesmo tempo.
Os animais podem ter sido preparados para usar oxigênio
extra como forma de abastecer grandes corpos, usados para devorar outras
espécies. “Era um nicho a ser ocupado”, disse Ruiz-Trillo, “e ele foi ocupado
assim que o mecanismo molecular estava pronto.”
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