Ai,
que sede!
A
garganta vai secando, até a sensação ficar insuportável. A pessoa pode buscar
alívio em qualquer bebida. Mas não se iluda: o corpo pede água. (Lúcia Helena de Oliveira, Carla Aranha
Schtruk e Sônia Goldfeder)
De repente, as seis grandes glândulas nos arredores da língua e
inúmeras outras menores, dispersas pela boca, iniciam uma operação tartaruga,
reduzindo cerca de um quarto da produção de saliva. Se nenhuma providência for
tomada, elas entrarão em greve geral. É um movimento de protesto: falta líquido
no organismo. Quando a taxa de liqüidez caiu meros 5%, as glândulas salivares
já começaram sua manifestação. Quem atravessa esse momento de crise pode achar
que há inúmeras maneiras de resolver o problema — uns goles de suco, um copo de
refrigerante, uma taça de milk-shake, uma xícara de leite. Há de fato uma
interminável carta de bebidas, que aparentemente põem tudo em ordem.
Aparentemente.
Porque, embora nem todo líquido contenha água — o mercúrio do termômetro, por
exemplo, não a contém —, toda bebida inclui essa substância em sua receita. E é
de água, afinal — dois átomos de hidrogênio enlaçados com um átomo de oxigênio
(a velha fórmula H2O ensinada na escola) — que o corpo sedento
precisa.Reunidas, as moléculas de água representam 70% do peso de um adulto.
Quem pensa que a maior parte desse volume corre em veias e artérias se engana:
apenas uma em cada dez dessas moléculas participam da mistura do sangue. Mais
de metade delas se acomoda dentro das células e as restantes — em torno de 30%
do total — formam o líquido intersticial, que preenche os vãos entre uma célula
e outra. Nomeada solvente universal pelos químicos, no organismo humano a água
carrega sais, proteínas, hormônios, gorduras e açúcares. "Dentro de cada
célula ocorre uma espécie de circulação aqüosa", descreve o nefrologista
Roberto Zatz, da Universidade de São Paulo.
"Conforme a diferença de concentração entre o líquido interno e o externo,
as substâncias saem ou entram na célula."O jogo de pressões se chama
osmose. Graças a ele, a água também transporta a escória do organismo, como as
moléculas de uréia, o bagaço das proteínas depois de terem sido aproveitadas
dentro das células. "A água ainda ajuda a regular a temperatura",
conta Zatz. "Todos os dias, uma pessoa perde cerca de 800 mililitros de
água pela transpiração. Ao umedecer a pele, o líquido evapora, roubando o calor
do corpo. Pode-se dizer que, como tudo o que é úmido, a tendência do corpo
humano é estar sempre secando." Além da perda pelo suor, 1,5 a 3 litros
escapam pela urina; 0,5 litro se evapora na respiração e, ainda, 200 mililitros
dão a consistência pastosa das fezes.
Daí o conselho de se beber diariamente 2 a 3 litros de água — ou de qualquer
outro líquido.Se o volume perdido não é reposto, a pessoa entra em processo de
desidratação, que pode ser fatal. Teoricamente, sem água, nenhuma substância
entra e nem sequer sai das células — o corpo fica travado. "Antes disso
acontecer, o cérebro entra em pane", esclarece o nefrologista. Como a
concentração do líquido intersticial aumenta, a água escapa do interior dos
neurônios, tentando restabelecer o equilíbrio. "O cérebro fica uma uva
passa. Se isso ocorre, não há volta." Por sorte, existem receptores no
meio do cérebro, no hipotálamo, que não param de analisar o sangue, medindo a
concentração ou osmolaridade das moléculas diluídas.
Segundo a fisiologista Guiomar Nascimento, da Escola Paulista de Medicina,
quando a osmolaridade não está entre 275 e 290 miliosmóis (unidade de
concentração das moléculas dissolvidas), é preciso perder ou ganhar água.
"Quando alguém almoça uma feijoada, a concentração de sal no sangue
aumenta bastante. Durante a ginástica, por sua vez, a pessoa perde líquido pelo
suor", exemplifica Guiomar. Nas duas situações, ou quando se aumenta a
quantidade de moléculas que a água tem de dissolver ou quando cai o volume de
água para dissolver determinado volume de substâncias, o resultado é a sede. "O
hipotálamo envia uma mensagem ao córtex, a superfície cinzento-escura do
cérebro.
Os neurônios que tecem o córtex são os responsáveis, entre outras coisas, pela
consciência. "Por isso, a partir do instante em que recebem o aviso, a
pessoa percebe que precisa ingerir líquido e corre atrás de um copo de
água", informa Guiomar. Cada gole escorrega garganta abaixo em altíssima
velocidade, passando em 1 segundo pelo esôfago, o tubo com cerca de 25
centímetros na altura do tórax. O trajeto pelo estômago e intestino costuma ser
mais lento, demorando de 3 a 45 minutos — tudo vai depender de a passagem estar
livre ou congestionada por alimentos. Só na porção final do aparelho digestivo,
no intestino grosso, o líquido é absorvido. "O hipotálamo interrompe,
então, as mensagens da sede, porque o equilíbrio se restabelece", diz
Guiomar. A explicação não coincide com a experiência de cada um: afinal, tomou
água e a sede sumiu; ninguém tem de esperar alguns minutos para sentir o
alivio.
"Existem teorias de que receptores na mucosa da boca e da garganta
mandariam sinais nervosos ao cérebro, quando a pessoa bebe água, por
exemplo", conta a fisiologista. "A umidade na região bloquearia a
reação de sede. Mas nunca ninguém conseguiu provar isso."Na circulação, a
principal escala da água será no par de rins, que eliminam as impurezas do
sangue e eventuais excessos de sais — a água, mais uma vez serve de veículo,
escoando essas substância para fora. "Os rins também são importantíssimos
para regular o nível de líquido no corpo", explica Guiomar. Segundo a
fisiologista, a dupla de órgãos filtra diariamente nada menos do que 180 litros
de sangue; 99% desse líquido é reabsorvido.
Mas uma substância lançada pela glândula hipófise, no cérebro, pode interferir
no processo de reabsorção: o hormônio antidiurético (HAD), fabricado por ordem
do hipotálamo. Ele age nas paredes do vaso coletor dos rins, tornando suas
células bastante permeáveis à água. Estas, então, roubam água pura da urina.
"E uma estratégia de defesa", explica o nefrologista Roberto Zatz.
"Além de induzir a reposição da água perdida, através da sede, o organismo
economiza o líquido que lhe resta." Segundo o médico, o ser humano é capaz
de concentrar até cinco vezes o volume urinário. "Isso indica que, durante
a evolução, ele nunca sentiu muita sede. O rato do deserto, por exemplo, tem o
triplo dessa capacidade."
Coquetel de minerais
Cerca de trinta marcas de água, com misturas diferentes de sais,
disputam o paladar dos franceses. Acreditando nos benefícios dessas substâncias
à saúde eles dominam a arte de extrair a melhor bebida dos mananciais
Dois mandamentos, um alemão e outro da Roma antiga, definem uma
água mineral extraída de fontes nunca inferiores a 1 500 metros de
profundidade. Segundo os alemães, para ser mineral a água deve conter, no
mínimo, 1 grama de sais minerais por litro. Os romanos, que em seu tempo nem
tinham como medir o teor dessas substâncias, sustentavam a tese de que o
líquido seria mineral desde que tivesse algum efeito terapêutico. Campeões
mundiais no consumo dessa bebida, os franceses, que bebem 4 bilhões de litros
de água mineral por ano — cerca de 76 litros por pessoa e mais 74 litros de
vinho — preferem engolir, até hoje, a versão romana. Um desavisado brasileiro
entre as gôndolas de um supermercado parisiense pode encher o carrinho de
garrafas de água de fonte, como são chamadas aquelas bebidas que, embora
eventualmente mineralizadas, não têm efeito reconhecido sobre a saúde.
Enfim, se lhe agradar o paladar, talvez o estrangeiro nunca perceba o engano
uma vez que, feito as nobres minerais, as águas de fonte se originam em camadas
subterrâneas e são, também, tão puras e potáveis, a ponto de dispensarem
qualquer tratamento de desinfecção. A influência romana nessa questão
conceitual começou em épocas anteriores a Cristo. No século I a.C., quando a
cidade de Vergese, no sul da França, fazia parte dos domínios de Roma, foram
construídas termas, para derramar a água gasosa que jorrava nas redondezas, em
banhos considerados capazes de curar qualquer mal-estar Supõe-se que a fonte
desse líquido com supostos poderes medicinais havia sido descoberta cerca de
cem ano antes, em 218 a.C., pela tropa do general Anibal, chefe de Estado de
Cartago (atual Tunísia), que tentava conquista a região. Nobilíssimas, as termas
de Vergese só foram abertas ao povo na Idade Média. Muito mais tarde, no século
XIX, o imperador Napoleão III autorizou que a famosa água do local fosse
engarrafada e distribuída em outras cidades, "para o bem da França"
de acordo com suas palavras.
Essa mesma bebida, hoje em dia, chega a 120 países, dentro de uma garrafa verde
e levemente bojuda, com a estampa da Perrier — a marca de água mineral mais
consumida do planeta.Não é só por causa da Perrier, porém, que os franceses se
orgulham de suas fontes termais. Afinal, nesse país, concorrem nada menos de
trinta marcas de água mineral, extraídas de locais diferentes. Entre elas, a
Vichy, a Vittel, a Evian — esta ocupa o primeiro lugar na preferência dos
descendentes de Asterix, o gaulês —, que começaram a ser industrializadas ainda
no século passado. "Os franceses não suportam o sabor desagradável dos
produtos químicos usados no tratamento da água de torneira", conta o
engenheiro geoquímico François lundt. "Por isso, o consumo das águas de
fonte e das águas minerais não pára de crescer.
" Responsável pela divisão de águas do Bureau de Pesquisas Geológicas e
Minerais (BRGM), uma agência do governo, Iundt e sua equipe assessoram tanto as
indústrias interessadas em prospectar fontes como os laboratórios que testam a
qualidade das águas comercializadas.Segundo o engenheiro, a concorrência entre
as marcas é tão acirrada que o segredo em torno de um novo manancial equivale
ao da descoberta de um poço de petróleo. O dinheiro envolvido no negócio
justifica o sigilo: o mercado francês de água mineral movimentou o equivalente
a 2,4 bilhões de dólares, no ano passado. "A primeira providência, quando
se pretende extrair uma água subterrânea, é pedir a autorização do
prefeito", conta o professor André Corbet da Academia Nacional de
Medicina, que se encarrega de dar o aval científico à nova fonte. "As
análises preliminares costumam durar dois anos", revela o médico Um novo
rótulo só chega às prateleiras com a aprovação do Ministério da Saúde,
garantindo que determinada água é benéfica para a saúde.
"Lembra Corbet que a bebida rica em cálcio colabora na formação de ossos,
dentes e membranas celulares; há suspeitas de que esse mineral também ajude o
bebedor da água a manter a calma, regulando os ritmos cardíacos. A água com
sais de fósforo, por sua vez, seria capaz de diminuir a fadiga muscular. Já
quando se encontra uma quantidade razoável de moléculas de iodo agarradas nas
de hidrogênio e oxigênio — a dupla dinâmica da fórmula H2O da água —, a
glândula tireóide, na altura do pescoço, passa a trabalhar melhor e, então, a
pessoa que encheu a barriga com o Iíquido tende a emagrecer. Ninguém nega, as
águas com minérios podem suprir eventuais carências no corpo dessas substâncias
(SUPERINTERESSANTE. ano 6, número 3). Ainda assim, muitos cientistas não vêem
nelas o gosto de remédio, que querem lhes atribuir os franceses.Segundo Corbet,
os cuidados não devem terminar depois do lançamento de uma água mineral no
comércio: "Por isso, a cada dois meses, nós realizamos testes de qualidade".
A linha de produção nas indústrias é orientada pelo atento Serviço de Minas do
governo, que determina a quantidade máxima de água a ser extraída em
determinado período. "Afinal, uma fonte não pode ser esgotada, por causa
de interesses econômicos", opina o médico. Na França, a divisão das águas
é traçada pela dosagem de minerais.
Os especialistas consideram pouco mineralizadas aquelas bebidas que têm entre
100 e 500 miligramas de sais por litro — as águas Evian e Perrier servem de
exemplo. Há uma categoria intermediária, em que se incluem as marcas Badoit e
Vittel, com 1 000 a 3 000 miligramas de minerais diluídos em cada litro.
Finalmente, existem águas supermineralizadas, que ultrapassam o limite dos 3
000 miligramas: é o caso da famosa Vichy.Mas a quantidade de minerais não é
tudo. Uma água mineral é comparável a um coquetel — pregam os especialistas —,
em que a mistura dos ingredientes determina o 5. sabor. 5. "Essa
combinação vai depender do tipo de solo por onde o líquido faz o seu percurso",
descreve o engenheiro Iundt. "Durante a viagem, ele seqüestra partículas,
tornando-se mais doce ou mais salgado, um pouco amargo ou ligeiramente ácido.
" Algumas águas são naturalmente gasosas, porque os lençóis subterrâneos
cortam áreas com enormes quantidades de restos vegetais, cujas moléculas ácidas
atacam o carbonato, componente das chamadas rochas calcárias. O resultado da
reação é puríssimo gás carbônico, que se mistura ao líquido, formando
bolhinhas. Curiosamente, uma vez extraídas, essas águas precisam perder o gás,
com a ajuda de uma bomba especial, para entrarem pelos canos, sem provocar
desastrosas pressões — e, conseqüentemente, eventuais vazamentos.O gás, no
entanto, não é jogado fora. Armazenado, ele é reinjetado no líquido, na hora do
engarrafamento. Em alguns casos, os produtores impregnam mais gás carbônico do
que havia na receita original da natureza. Na Perrier que escorre pelo gargalo
de vidro, por exemplo há 3,5 vezes mais bolhinhas do que na água que sai de sua
tradicional fonte. Aliás, foram descuidos na aparelhagem usada nesse processo
de gaseificação os responsáveis pelo escandaloso caso de contaminação das
Perrier, há cerca de dois anos e meio.
Cientistas americanos acharam 17 milionésimos de grama de benzeno numa amostra
de treze garrafas da água, importada da França. A substância é considerada
cancerígena. Por isso, em menos de uma semana, os supermercados americanos
devolveram mais de 72 milhões de garrafinhas verdes ao fabricante europeu.
Este, para honrar a marca, ordenou o recolhimento de outros 160 milhões de
exemplares da safra benzeno, espalhados ao redor do mundo. Foi uma tempestade
em copo d’água: com a dosagem ínfima de benzeno detectada, se uma pesssoa
bebesse 1 litro de Perrier contaminada por dia, ao longo de trinta anos, ela
teria uma chance em 1 milhão de desenvolver um tumor.Depois dos franceses, são
os alemães que mais matam a sede com água mineral — o consumo anual fica em
torno de 49 litros por pessoa. Em seguida, vêm os italianos: 47 litros per
capita. no mesmo período.
Nos Estados Unidos, esse consumo fica próximo dos 17 litros. Em média, um copo
de água mineral custa nesses países trezentas vezes mais do que o mesmo volume
de água de torneira — e, ainda assim, tem seu público fiel. "Na França, a
água já virou uma espécie de bebida nacional", diz Claude Roger, há 23
anos maître do famoso restaurante Maxim’s, freqüentado pela alta sociedade
européia. Para acentuar seu status, o Maxim’s oferece uma água exclusiva, a
Chateldon, ligeiramente gasosa. "Os jovens executivos adoram pedi-la,
porque ela combate o estresse", arrisca o maître. Seu colega de ofício,
Michel Roger, do badalado Closerie de Lilas — um bar encravado em Montparnasse,
o bairro intelectual de Paris — conta que o embaixador brasileiro Carlos Alberto
Leite Barbosa é um de seus mais assíduos clientes e nunca dispensa diversas
doses de Evian. "Ele tem bom gosto, é uma água leve", elogia.
"Para um francês, saber escolher uma água é tão importante quanto
selecionar um vinho."
Muito mais que um filtro
Diariamente, o par de rins filtra o equivalente a 36 vezes o
volume total de sangue, que chega pela artéria renal, um ramo da aorta
abdominal. Esse vaso se ramifica sucessivamente até ficar com a espessura
aproximada de um fio de cabelo. É então que entra em uma espécie de grão
microscópico, a cápsula de Bowman, onde se enrola formando um novelo vascular,
o chamado glomérulo. O sangue que circula por ali deixa passar a água e as
substâncias dissolvidas. O líquido, então, escoa da cápsula de Bownam até um
túbulo com desenho de alça — todo esse conjunto se chama néfron. Há cerca de 1
milhão deles em cada rim. Nesse caminho, o organismo reabsorve a maior parte do
volume de líquido filtrado. E não é só isso: no filtrado do glomérulo há
substâncias como a glicose, que precisam ser devolvidas à circulação porque
ainda podem ser utilizadas pelo organismo. Existem, por exemplo, cerca de 7
gramas de cloreto de sódio, sal comum. Em cada litro de sangue; na filtragem,
no entanto, os rins captam cerca de 1 quilo de sal por dia e só 15 gramas
acabam sendo eliminadas nela urina.